sexta-feira, 9 de maio de 2014

A palavra de pronúncia proibida

A palavra cuja pronúncia é proibida, cujo significado e o que ela nomeia deve estar entre os assuntos mais falados nas últimas semanas. E está enchendo a minha cabeça com pensamentos que vou transbordar aqui.

Depois que o Daniel Alves comeu a banana que lhe atiraram como insulto vi muitos comentários insuflados na internet. Alguns falando com propriedade duvidosa ou quase nula sobre um assunto que essa gente mesmo classificou como sendo “moda”, “tudo é racismo”, “já deu”.

Racismo sempre foi um tema desgastante, palavra que ninguém quer proferir ou ato que ninguém gosta de nominar. É tenso, é forte, tem uma carga história muito pesada não apenas aqui no Brasil, mas em várias etnias que sofreram atrocidades ao longo dos séculos.

Racismo segundo o Michaelis:
sm (raça+ismo) 1 Teoria que afirma a superioridade de certas raças humanas sobre as demais. 2 Caracteres físicos, morais e intelectuais que distinguem determinada raça. 3 Ação ou qualidade de indivíduo racista. 4 Apego à raça.

Racismo segundo o Aurélio:
s.m.. Sistema que afirma a superioridade de um grupo racial relativamente aos outros, preconizando, em particular, o isolamento destes no interior de um país (segregação racial) ou até visando ao extermínio de uma minoria (racismo anti-semita dos nazistas).

Dois famosos e conhecidos dicionários esmiúçam o significado de forma PARECIDA, mas não igual. É um termo complexo de definir, tenho certeza de que cada um entende de uma forma, mas é oportuno dizer que o entendimento de que racismo é a Superioridade de Brancos perante Negros é ERRADO. Estamos em 2014, né?! Pois é! Ainda tem gente que acha que só negro sofre racismo. Aliás, racismo, preconceito racial, injúria racial, xenofobia tem definições diferentes, mas passam pelo mesmo caminho, que é o de julgar alguém inferior.

Esta é uma opinião pessoal de quem já viveu algumas situações sob olhares racistas (ou preconceituosos, pra quem quiser entender assim) ao longo de seus poucos anos de vida.

Minhas irmãs quando bebês tinham a pele muito clara, muito clara mesmo, e quando todas nós íamos ao médico as outras mães não hesitavam em afirmar que eu era a filha da D. Neusinha e as minhas irmãs não. Perguntavam porque elas eram bem claras e eu escura e minha mãe, muito espirituosa, respondia que eu nasci a noite e elas de dia.

Lembro-me de recebermos em nossa casa uns primos do Mato Grosso, fui cumprimentar o primo pequeno de segundo grau com a mão e ao estender-lhe a minha ele se negou a apertar, disse que não o faria porque minha mão era preta. Parece que foi ontem, a mãe dele reagiu como se fosse uma brincadeira, meus pais fizeram o mesmo e eu, criança que era, sem graça reagi como os adultos, sorri amarelo. Clássica situação de agressão silenciosa.

Na segunda série, os colegas de família com situação financeira parca “entravam na caixa”, termo usado para as crianças que recebeiam o material escolar do poder público, em sua maioria, crianças negras. Meu pai era funcionário público, sempre nos manteve muito bem, obrigada! Na época não sobrava dinheiro, mas nunca faltava nada, incluindo o material escolar. Lembro-me perfeitamente da Profª Sueli pedir para o aluno Anderson (criança de cabelo encarapinhado, nariz batatinha e pele claríssima) contar os alunos da “caixa” e lá fui eu na conta de voz alta do colega. Se é negra, é caixa! Fácil assim. Lembro ainda de gritar que eu não era da caixa. Não culpo o menino da época pela contagem dos alunos negros, ele apenas manifestou a leitura de uma situação que ele via.

Verba docent, exempla trahunt. [Tosi 359] Palavras ensinam, exemplos arrastam.”

Quando mocinha fui a uma loja famosa de departamentos no centro da cidade comprar roupas e eis que o segurança da loja ficou no nosso encalço, esperando que eu e minha mãe tentássemos furtar alguma peça.

Já adulta, uma senhora me parou na Rua Padre Raposo, na Moóca, local da empresa onde eu era Assistente Financeiro. Ela teve a pachorra de dizer que sempre me via passar ali e me abordou para perguntar se eu trabalhava em casa de família.

Há poucos anos uma mãe foi à secretaria da escola em que trabalhei e soltou “Esta é a escola dos escurinhos?”. O diretor era negro, eu (Secretária e responsável pelo setor) negra e o auxiliar da secretaria que era o cartão de visita da escola também negro. Se fôssemos brancos ela faria tal declaração?

Uma “colega” na época do ensino médio veio me dizer com a maior tranquilidade: “Como a A. consegue “ficar” com o G.. Ele é muito preto, ao menos se ele fosse menos preto...”. Cortei relação com a “colega”, que não entendeu o motivo.

...De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados ...”

Haiti - Caetano Veloso


Semana passada uma PROFESSORA que mora no nordeste rebateu um comentário que fiz sobre uma tirinha da internet onde aparecia a extinta camiseta “100% Negro” como algo legal e a inexistente “100% Branco” apontada na tirinha como racista. Quando expus a visão de que era apenas uma autoafirmação de que ser negro não é demérito, que a autoafirmação não é um insulto a ninguém, mas sim o reconhecimento de uma identidade “sou como sou, me orgulho do que sou e espero respeito como todos”. Ela rebateu em tom revoltoso que “NÓS”, os negros, (ela usou o pronome “vocês”) somos os culpados pelo racismo por sempre tocarmos no assunto. Disse que se ninguém dissesse nada, se ninguém ficasse alegando que tudo é racismo, o próprio racismo já teria deixado de existir. Lógica infantil, pra não dizer racista. No comentário ela admitiu que há pessoas racistas, não se colocando no bolo. Quanta incoerência!!! Ela quer acreditar que se ninguém se manifestar, é porque o racismo não existe e logo não precisa ser enfrentado. É claro que ela era branca.

Para que o mal triunfe, basta que os bons não façam nada.” [The only thing necessary for the triumph of evil is for good men to do nothing.] ―Edmund Burke.


Os professores que já trabalharam Menina Bonita do Laço de Fita, da Ana Maria Machado, podem citar as atrocidades que saem da sala de aula. Uma colega professora me relatou que os alunos riam e diziam “Como ela pode ser bonita? Ela é preta!”. Volto a dizer que crianças são reflexos da educação que recebem e aprendem mais com as atitudes e exemplos dos outros (seja o outro adulto ou criança, parente ou estranho) do que pela verbalização.

Estas foram algumas das situações que vivenciei e quero saber quem vai ter a ousadia, a irresponsabilidade de dizer que tudo não passa de fricote da minha parte, ou dizer o clássico “Ah! Agora tudo é racismo!!” ou o ainda desrespeitoso “Tá querendo os 5 minutos de fama!”. Quem pode mensurar ou classificar o que senti ou o que vivi senão EU? Era EU quem estava ali num contexto que não permitia outra constatação. Como pode um homem (gênero masculino) descrever com propriedade a dor de um parto ou a dor de uma cólica menstrual se ele NUNCA poderá sentir na carne o que de fato é essa dor pela sua condição biológica e anatômica masculina? Analogia que faço com o racismo, como pode uma pessoa que nunca passou por este tipo de situação dentro de um contexto muito claro ter a falta de respeito, a pretensão de querer impor sua visão ou seu achismo com propriedade? Que propriedade??!!

Com relação ao tabu do racismo, a internet permite que os que não tem coragem de verbalizar, ou melhor, oralizar, se manifestem na web. Várias formas de manifestar o racismo, seja ele escancarado,  velado, negado, mas presente, se dão pelas redes sociais e pelos comentários de matérias veiculadas em grandes sites, sobretudo de TV´s, jornais e revistas. As pessoas se servem da distância entre os monitores e do anonimato para manifestar, ainda que desapercebidamente, um racismo encrustado e incoerentemente negado.

Não sou perita no assunto, nem tenho essa pretensão. Quero expor aqui a necessidade de um pouco de respeito, principalmente por parte de quem se considera “à parte” dos humanos passíveis de sofrerem racismo (ou preconceito), e que energicamente se manifesta de maneira impensada. O que quero dizer com isso é que nenhum ser humano deve ser presunçoso de querer mensurar o sentimento ou mágoa de alguém, de um povo (e não estou falando apenas do que acontece com negros e seus descendentes quase negros) que sofreu e carrega consigo o dever moral de honrar as conquistas de seus antepassados e continuar a combater toda forma de agressão à dignidade humana. Não sejam desrespeitosos ao querer desqualificar o sentimento de alguém que sofreu racismo (ou preconceito), minimizar a situação a algo obrigatoriamente aceitável, à nada, à imaginação, à necessidade de exposição.

Quando o assunto é racismo (ou preconceito) há muito que se ouvir, ler, se colocar no lugar do outro, ponderar diferentes pontos de vista, contextualizar situações, vivências, se despir de pré conceitos antes de se manifestar de forma egocêntrica, pra não dizer outra coisa e ser deselegante.

Cléo F. Alves (menina preta da cor do gato)
S. P.
10/05/2014