A
palavra cuja pronúncia é proibida, cujo significado e o que ela
nomeia deve estar entre os assuntos mais falados nas últimas
semanas. E está enchendo a minha cabeça com pensamentos que vou
transbordar aqui.
Depois
que o Daniel Alves comeu a banana que lhe atiraram como insulto vi
muitos comentários insuflados na internet. Alguns falando com
propriedade duvidosa ou quase nula sobre um assunto que essa gente
mesmo classificou como sendo “moda”, “tudo é racismo”, “já
deu”.
Racismo
sempre foi um tema desgastante, palavra que ninguém quer proferir ou
ato que ninguém gosta de nominar. É tenso, é forte, tem uma carga
história muito pesada não apenas aqui no Brasil, mas em várias
etnias que sofreram atrocidades ao longo dos séculos.
Racismo
segundo o Michaelis:
sm
(raça+ismo) 1 Teoria que afirma a superioridade
de certas raças humanas sobre as demais. 2 Caracteres
físicos, morais e intelectuais que distinguem determinada raça. 3
Ação ou qualidade de indivíduo racista. 4 Apego à raça.
Racismo
segundo o Aurélio:
s.m..
Sistema que afirma a superioridade de um grupo racial relativamente
aos outros, preconizando, em particular, o isolamento destes no
interior de um país (segregação racial) ou até visando ao
extermínio de uma minoria (racismo anti-semita dos nazistas).
Dois
famosos e conhecidos
dicionários esmiúçam o
significado de forma
PARECIDA, mas não igual.
É um termo complexo
de definir, tenho certeza de que cada um entende de uma forma, mas é
oportuno dizer que o
entendimento de que racismo é a Superioridade
de Brancos perante Negros é
ERRADO. Estamos
em 2014, né?! Pois
é! Ainda tem gente que acha
que só negro sofre racismo. Aliás, racismo, preconceito racial,
injúria racial, xenofobia tem
definições diferentes, mas passam pelo
mesmo caminho, que é o de julgar alguém inferior.
Esta
é uma opinião pessoal de quem já viveu algumas situações sob
olhares racistas (ou
preconceituosos, pra quem quiser entender assim)
ao longo de seus poucos anos de vida.
Minhas
irmãs quando bebês tinham a pele muito clara, muito clara mesmo, e
quando todas nós íamos ao médico as outras mães não hesitavam em
afirmar que eu era a filha da D. Neusinha e as minhas irmãs não.
Perguntavam porque elas eram bem claras e eu escura e minha mãe,
muito espirituosa, respondia que eu nasci a noite e elas de dia.
Lembro-me
de recebermos em nossa casa uns primos do Mato Grosso, fui
cumprimentar o primo pequeno
de segundo grau com a mão e
ao estender-lhe a minha ele se negou a apertar, disse que não o faria
porque minha mão era preta. Parece
que foi ontem, a mãe dele
reagiu como se fosse uma brincadeira, meus pais fizeram o mesmo e eu,
criança que era, sem graça reagi como os adultos, sorri amarelo.
Clássica situação de agressão silenciosa.
Na
segunda série, os colegas
de família
com situação financeira
parca “entravam
na caixa”, termo usado para as crianças que recebeiam o material
escolar do poder público, em sua maioria, crianças negras. Meu pai
era funcionário público, sempre
nos manteve muito bem, obrigada! Na época não
sobrava dinheiro, mas nunca faltava nada, incluindo o material
escolar. Lembro-me perfeitamente da Profª Sueli pedir para o aluno
Anderson (criança de cabelo encarapinhado, nariz batatinha e pele
claríssima) contar os alunos da “caixa” e lá fui eu na conta de
voz alta do colega. Se é negra, é caixa! Fácil assim. Lembro ainda
de gritar que eu não era da caixa. Não culpo o menino da época
pela contagem dos alunos negros, ele apenas manifestou a leitura de
uma situação que ele via.
“Verba docent,
exempla trahunt. [Tosi 359] Palavras ensinam, exemplos
arrastam.”
Quando
mocinha fui a uma loja famosa de departamentos no centro da cidade
comprar roupas e eis que o segurança da loja ficou no nosso encalço,
esperando que eu e minha mãe tentássemos furtar alguma peça.
Já
adulta, uma senhora me parou na Rua Padre Raposo, na Moóca, local
da empresa onde eu era Assistente Financeiro. Ela teve a pachorra de
dizer que sempre me via passar ali e me abordou para perguntar se eu
trabalhava em casa de família.
Há
poucos anos uma mãe foi à secretaria da escola em que trabalhei e
soltou “Esta é a escola dos escurinhos?”. O diretor era negro,
eu (Secretária e responsável pelo setor) negra e o auxiliar da
secretaria que era o cartão de visita da escola também negro. Se
fôssemos brancos ela faria tal declaração?
Uma
“colega” na época do ensino médio veio me dizer com a maior
tranquilidade: “Como a A. consegue “ficar” com o G.. Ele é
muito preto, ao menos se ele fosse menos preto...”. Cortei relação
com a “colega”, que não entendeu o motivo.
“...De
ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados
como pretos
Só
pra mostrar aos outros quase pretos
(E
são quase todos pretos)
E
aos quase brancos pobres como pretos
Como
é que pretos, pobres e mulatos
E
quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados ...”
Haiti - Caetano Veloso
Semana
passada uma PROFESSORA que mora no nordeste rebateu um comentário
que fiz sobre uma tirinha da internet onde aparecia a extinta
camiseta “100% Negro” como algo legal e a inexistente “100%
Branco” apontada na tirinha como racista. Quando expus a visão de
que era apenas uma autoafirmação de que ser negro não é demérito,
que a autoafirmação não é um insulto a ninguém, mas sim o
reconhecimento de uma identidade “sou como sou, me orgulho do que
sou e espero respeito como todos”. Ela rebateu em tom revoltoso que
“NÓS”, os negros, (ela usou o pronome “vocês”) somos os
culpados pelo racismo por sempre tocarmos no assunto. Disse que se
ninguém dissesse nada, se ninguém ficasse alegando que tudo é
racismo, o próprio racismo já teria deixado de existir. Lógica
infantil, pra não dizer racista. No comentário ela admitiu que há
pessoas racistas, não se colocando no bolo. Quanta incoerência!!!
Ela quer acreditar que se ninguém se manifestar, é porque o racismo
não existe e logo não precisa ser enfrentado. É claro que ela era
branca.
“Para
que o mal triunfe, basta que os bons não façam nada.” [The only
thing necessary for the triumph of evil is for good men to do
nothing.] ―Edmund Burke.
Os
professores que já trabalharam Menina Bonita do Laço de Fita, da
Ana Maria Machado, podem citar as atrocidades que saem da sala de
aula. Uma colega professora me relatou que os alunos riam e diziam
“Como ela pode ser bonita? Ela é preta!”. Volto a dizer que
crianças são reflexos da educação que recebem e aprendem mais com
as atitudes e exemplos dos outros (seja o outro adulto ou criança,
parente ou estranho) do que pela verbalização.
Estas
foram algumas das situações que vivenciei e quero saber quem vai
ter a ousadia, a
irresponsabilidade
de dizer que tudo não passa de fricote da minha parte, ou dizer o
clássico “Ah! Agora tudo é racismo!!” ou
o ainda desrespeitoso “Tá querendo os 5 minutos de fama!”.
Quem
pode mensurar ou classificar o que senti ou o que vivi senão EU? Era
EU quem estava ali num contexto que não permitia outra constatação.
Como pode um homem (gênero masculino) descrever com propriedade a
dor de um parto ou a dor de uma cólica menstrual se ele NUNCA poderá
sentir na carne o que de fato é essa dor pela sua condição
biológica e anatômica masculina? Analogia que faço com o racismo,
como pode uma pessoa que nunca passou por este tipo de situação
dentro de um contexto muito claro ter a falta de respeito, a pretensão de querer impor sua visão ou seu achismo com
propriedade? Que propriedade??!!
Com
relação ao tabu do racismo, a internet permite que os que não tem
coragem de verbalizar, ou melhor, oralizar, se manifestem na web.
Várias formas de manifestar o racismo, seja ele escancarado, velado, negado, mas presente, se dão pelas redes sociais e pelos
comentários de matérias veiculadas em grandes sites, sobretudo de
TV´s, jornais e revistas. As pessoas se servem da distância entre
os monitores e do anonimato para manifestar, ainda que
desapercebidamente, um racismo encrustado e incoerentemente negado.
Não
sou perita no assunto, nem tenho essa pretensão. Quero
expor aqui a necessidade de um pouco de respeito, principalmente
por parte de quem se considera “à parte” dos
humanos passíveis de sofrerem racismo (ou preconceito), e que
energicamente se manifesta de maneira impensada. O que quero dizer
com isso é que nenhum ser humano deve ser presunçoso de querer
mensurar o
sentimento ou mágoa de alguém, de
um povo (e
não estou falando apenas do que acontece com negros e seus
descendentes quase negros)
que sofreu e carrega consigo o dever moral
de
honrar as
conquistas
de seus antepassados e
continuar a combater toda forma de agressão à dignidade humana.
Não
sejam desrespeitosos ao querer desqualificar o sentimento de alguém
que sofreu racismo (ou preconceito), minimizar a situação a algo
obrigatoriamente aceitável, à nada, à imaginação, à necessidade
de exposição.
Quando
o assunto é racismo (ou preconceito) há
muito que se ouvir, ler, se colocar no lugar do outro, ponderar
diferentes pontos de
vista, contextualizar situações, vivências, se despir de pré
conceitos
antes
de se manifestar de forma egocêntrica, pra
não dizer outra coisa e ser deselegante.
Cléo
F. Alves (menina preta da cor do gato)
S.
P.
10/05/2014